17 de janeiro de 2010

Inevitaveis transiçoes

Inevitaveis transiçoes
PONTO DE VISTA
Inevitáveis transições*
Lya Luft**


Não queremos perder nada e, se pudéssemos, teríamos amarradas em nós todas as coisas positivas, os momentos felizes e as pessoas amadas - levando-as conosco feito um tesouro sufocante, pois o que é bom, quando agarrado com unhas e dentes, aprisiona.


Viver é perder, viver é ganhar, e, quando escrevi um pequeno ensaio chamado _Perdas e Ganhos_, eu falava nisso. Embora no mais recente, _Em outras Palavras_, eu mais uma vez deixe a ficção reunindo crônicas sobre os assuntos mais gerais, alguém comentou que escrevo sempre sobre as mesmas coisas: pode ser. Todo artista tem seus temas viscerais, dos quais não quer se livrar. Ao contrário, ele os repete, exorciza e transfigura de muitos modos, não repetindo por pobreza, mais intensificando para melhor expressar.


Porque é assim que se faz. Ou é assim que eu faço, e falo da vida. Quando falo da morte, também falo da vida. Quando falo da vida e morte, falo em relações amorosas - ou rancorosas. Quando escrevo sobre palavras ou linguagem, escrevo sobre palavras ou linguagem, escrevo sobre silêncio e incomunicabilidade.


Esta é, aliás, uma das marcas do ser humano: não saber se comunicar.


Quanta dor, quanto mal-entendido, quanta calúnia, quanto abandono e incompreensão devidos a palavras e emoções mal expressas, mal ouvidas, mal sentidas, insuficientes ou excessivas. Quanta perda, ou melhor: quanto desperdício.


Mas nem todas as perdas são vida jogada fora: algumas são necessárias. É preciso saber alternar as perdas com novos ganhos. Alguns deles, aliás, dependem da anterior perda. Somos contraditórios como tudo o mais.


Trabalho de momento em dois projetos, um ensaio sobre silêncio e incomunicabilidade e um livro de contos. Percebo, porém, nessa singular autonomia que a obra tem em relação ao autor, que talvez ambos acabem se fundindo num romance. Muitas vezes foi assim, muitas vezes será. O artista precisa de boa escuta: seguir o sopro do vento interior, que não é o dos elogios, críticas, vendagem ou fracasso, mas acontece num outro registro, que só ele percebe. É dele, ninguém mais tem acesso - nem deve ter.


Nesse novo trabalho ainda indefinido, ainda emergindo das águas profundas, escrevo sobre relacionamentos deteriorados, ou delicados amores. Sobre a nossa dificuldade em ser mais felizes, sobre a luta eterna entre pulsão de alegria e desejo de término e morte.


Por erro de momento e cálculo, podemos perder tempo e vida - mas podemos ter novos ganhos, se não formos nem tolos nem rígidos demais, se o vício da autoflagelação não superar o de realização. Podemos ter um amor bom porque perdemos o que estava distorcido e ruim. Podemos ter uma vida nova porque superamos a outra, que era tormentosa e falsa. Podemos ter novo projeto de trabalho porque o outro não nos satisfazia mais. Isso é que chamo de arranjo, audácia positiva, salvação.


Repito, muitas coisas é preciso perder. É preciso saber perder. A criança ter de perder de certa forma a mãe para a reconquistar em outra maneira, não mais a mãe todo poderosa, sem a qual não sobrevivemos nos primeiros anos, mas a que estimula e concilia, que empurra para cima e para adiante, nos respeita no que somos e podemos fazer - e assim também nos perde um pouco, para nos ganhar melhor. Quando adultos, temos de ratificar essa perda, tomando-nos mais autônomos, menos rebeldes porque mais seguros, mais amorosos talvez porque mais tranqüilos. As naturais implicâncias entre pais e filhos, sobretudo mães e filhos, cedem lugar a uma nova camaradagem, mais alegria e apoio mútuos.


Só quem não quiser botar rédeas e algemas poderá - sabendo perder - ganhar parceiro ou parceira carinhosos e alegres, em lugar de relações que parecem câmaras de tortura óbvias ou, pior, sutis.


O que é esse perder? É, de novo, olhar o outro, abrir-lhe os necessários espaços, permitir que o bom senso fale mais alto que o egoísmo. E, se algum dia houver uma real separação, nada mais digno, mais respeitavel, do que deixar o outro ir, preservando os momentos bons que houve,para que não se envenene isso que um dia foi amor e compromisso mútuo.


Se não formos demasiado neuróticos, os belos momentos estarão em nós como fundamento de uma nova experiência.


O que não podemos perder de verdade é a capacidade de contemplar e curtir a beleza e os afetos, de manter a compostura, o orgulho e a esperança. Se os deuses, nos ajudarem a tanto, porque às vezes isso é dura tarefa.


* Revista Veja, 13 de dezembro de 2006.
** Lya Luft é escritora.


FONTE DA FOTO:
http://gracamourao.files.wordpress.com/2009/08/pensador.jpg

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